O Desafio do Retrato [parte 4] – je ne sais quoi | #Retrato

Anteriormente (no texto parte3), arrisquei uma breve especulação sobre essa tal presence. Aquelas características; digamos, intrínsecas a algumas pessoas e não (somente) condicionada às posturas e encenações dos papéis sociais. Uma áurea que acompanha o ser, emerge como luz resplandecente e dita (para nossa sorte) boa parte da dinâmica e clima de uma sessão de retrato. Esse(s) traço(s) na personalidade confere uma escrita e componentes necessários de uma verdadeira imagem profunda – não somente no registro, mas na profundidade além da representação.  

Sabemos que a arte do retrato, diferentemente de uma mera selfie (atual) ou mesmo de um registro trivial, contém elementos que vão além da operação de uma câmera. É preciso levar em consideração o olhar, a técnica, o estilo, o entendimento e o approach do fotógrafo. Tentando somatizar (dançar/ou lutar) com tudo que vem e está no outro – o retratado. Se tudo der certo, com forças da experiência e até um pouco de sorte, temos um retrato. Assim explanando parece simples, mas, não é.  

Jennifer Henderson, no texto “Uma Ode ao Retrato” (em inglês), publicado no site Witness, ressalta que todos os fotógrafos de retratos são fotógrafos, mas nem todos os fotógrafos são fotógrafos de retrato. Não sei se você concorda com esse apontamento, mas diz muito acerca dos desafios dessa área. Aliás, a editora reforça que “o retrato é uma categoria de fotografia que é tão complexa e única que pode abranger todas as outras categorias de fotografia e ainda assim se manter sozinha”.

Nesse mesmo artigo, Jennifer utiliza uma expressão muito conveniente e que pode servir de reforço para esse nosso exercício reflexivo sobre o retrato e suas nuances, especialmente acerca do que o outro pode ter para ser escrito em uma fotografia. Segundo ela, há uma espécie de “je re sai quoi”. Isto é, tudo que se origina ou está ligado à personalidade da pessoa (fotografada). Ou ainda, digamos que podem ser as “coisas que não podem ser vistas a olho nu”.

Caro(a) leitor, justamente aqui está o ponto de intersecção no qual refletimos no último artigo e agora. A justa e boa combinação entre o fotógrafo e retrato. A concomitância entre a objetividade e subjetividade. A síntese da busca. É esse “quê”, intrínseco ao outro, tão almejado e no qual temos a pretensão de gravar nos pixels (ou negativo).

Tecer comentários de algo tão subjetivo como essa questão da presença do outro ou especialmente acerca de um tal “encantamento natural”, é remar na correnteza rio acima. Trata-se de algo heterogêneo, multifacetado e imbricado na fluidez da natureza humana. A questão não se esgota e, portanto, vamos arriscar fechar provisoriamente com mais algumas linhas explorando um sentido de como se busca ou trabalha isso para um retrato.

Vamos para uma ilustração mental. Um exemplo que se encaixa no contexto é de uma fotografia do célebre fotógrafo Marcio Scavone. Era o retrato de uma pessoa sentada numa cadeira, estava de costas e com um charuto. Uma luz angulada de cima destacava sua silhueta. Para quem tem está inserido no contexto e repertório e supera a polissemia da fotografia, sabe que aquele era o apresentador Jô Soares. É uma economia. Não precisa muito. Não há necessidade de estar de frente, você sabe que é o Jô Soares. É um retrato que vai além das características objetivas.  

Como buscamos ou extraímos isso?

Bem, não há uma fórmula pronta. É pura construção – ou desconstrução. Aliás, na verdade, pura evolução do fotógrafo. Isso surge na forma de trabalhar, no seu estilo, na economia e precisão com deixa a luz agir, como opera o equipamento ou como dirige o estúdio, na forma de ser objetivo sem ser arrogante [artista metido a ter afetações é um dos piores clichês da artificialidade]. De todos os fotógrafos de renome que conversei, todos estavam num patamar, numa frequência incrível – não só profissional, mas de pessoa, com humildade, paciência e humanidade. Logo, arrisco dizer que esse início de trabalho, tudo brota também na sua presença, no seu jeito e na sua empatia que coexiste no ato, no ato fotográfico. É uma dança, é uma transa, é uma luta amigável.  

Para nossa sorte, esse oculto, esse “ethos”, essa coisa do “je ne sai quoi” pode ser encontrado na celebridade ou no anônimo, no rico ou no pobre, no homem ou na mulher, em mim ou em você. Tem de mergulhar nos olhos, na leitura e interpretação do outro. Ali está o necessário.

Para citar um caso particular, resumo o encontro que tive com o engenheiro e arquiteto Lolô Cornelsen. Um dos grandes nomes da arquitetura modernista brasileira e que, infelizmente, faleceu em 2020. A proposta uma foto para ilustrar um artigo de perfil. A entrevista e fotos foram feitas na residência do arquiteto. Lá encontramos um sujeito – apesar da idade avançada – genial, ativo, verdadeiro. Disposto, aberto, performático, cru, demasiadamente humano. Cada gesto, cada explicação sobre sua carreira, em cada canto da casa, rendia uma foto. Foram dois encontros, duas sessões, e nas duas eu fiz um retrato e não somente uma foto.

Como já mencionado, ocasiões e pessoas assim já trazem em si a essência necessária para um retrato. Basta estar atento, entrar na dança, pegar o ritmo e fotografar. Por fim, como é enunciado no livro “O Pequeno Príncipe”, sempre tenha em mente que “as coisas mais belas do mundo não podem ser vistas ou tocadas, elas são sentidas com o coração”. É assim como se enxerga além, especialmente se for uma pessoa.

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